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2025

 

Algumas coisas são vistas apenas no escuro

Individual - OMA Galeria - São Paulo/SP​

Curadoria: Flavia Gomes

Algumas coisas são vistas apenas no escuro, por Flavia Gomes

 

Olhar as pinturas recentes de Marina Ayra é como ver as camadas mais profundas de outra pessoa.  Algo se desloca em nós. Não apenas os olhos: o corpo inteiro é convocado, como se fôssemos tragados para dentro do azul das paisagens de criaturas animadas, brincadeiras de criança, máscaras de coelho, vísceras e metamorfoses. Produzidas entre novembro de 2024 e maio de 2025, as obras representam uma ruptura importante com a produção anterior, de luz filtrada, cenas interiores e quintais ensolarados. Elas passam agora a pulsar a vibração do nosso subterrâneo.

 

Até então, seus trabalhos flutuavam rarefeitos na superfície. Fragmentos de cenas miravam contínua e detalhadamente para o piso e os ladrilhos, móveis, plantas e sombras, de animais e indivíduos indistintos, iluminados pela luz quente e melancólica do meio da tarde. A atmosfera lenta e abafada dessas imagens me fazem lembrar da personagem do conto Amor, de Clarice Lispector, que flerta com a superfície e a passividade domesticada, mas se vê do avesso ao presenciar uma cena que a perturba.

 

Nascida em São Paulo, em 1979, Marina Ayra iniciou seus estudos em arquitetura na FAAP, onde a prática extensa em desenho a levou a receber, em 2009, a convite da universidade, uma bolsa de residência artística de seis meses na Cité Internationale des Arts, em Paris. Do interesse inicial pela linha, pela estrutura, e pela harmonia das cores seguiram-se construções mais minuciosas e subjetivas, com camadas difusas, planos entrecortados, sempre cobertos por véus de organza de seda. O tecido operava como um filtro, película que suavizava o banal cotidiano, planificando a perturbação dos ladrilhos de pedra pontiaguda, das pontas afiadas, impedindo-nos de ver a cena por inteiro. Havia ali uma nitidez silenciosa: o desejo de ver, sem romper, sem violar.

 

Ayra parecia mirar o chão como quem estuda rachaduras, procurando o ponto exato para escavar — uma via de escape, uma passagem segura para descer e, talvez, voltar. Mas a escavação inaugura um canteiro de obras do qual dificilmente se retorna o mesmo. Abandonar a segurança do mundo conhecido é uma exigência das travessias. A descida ao subterrâneo, onde a lógica se dissolve e as regras da realidade perdem efeito, marca o ponto de virada da sua produção.

 

Paisagens veladas de outrora cedem espaço a composições mais complexas e simbólicas, em que a luz, intensificada pelo uso da tinta óleo, aqui reintroduzida, ganha aura mágica. Os tempos se misturam, se sobrepõem, se reconfiguram como plano. O que era conhecido agora parece limitado demais, e isso muda tudo. E assim colhemos nas bordas das imagens pistas de uma nova paisagem em formação.

 

As composições apresentam mergulhos no imaginário arquetípico em que figuras maternas se confundem às da fauna. Criaturas que eram sombras, agora ganham corpo, mitologias. Corvos, urubus, lebres, hienas e jacarés povoam as cenas, instaurando um campo de tensões entre o cuidado e a brutalidade, entre a presença e o prenúncio do que há por vir. A ternura ainda persiste aqui e ali — o jacaré dá a mão ao bebê aprendendo a andar, o urubu acompanha a criança andando de bicicleta, o grande pássaro que embala a criança.

 

Inundações, corpos submersos, cracas 
Máscaras de animais que se transformam 
Corpos antropomórficos 
Um flamingo-metamorfose 
Um coelho que remexe as entranhas 
O azul, o azul, o azul.

 

A presença furtiva de um corvo iluminado pela luz azul e de um anzol amarrado aos pés de uma lebre em Despedida (2025) confirmam que a escavação não é arqueológica — é íntima, emocional, espiritual. Ela opera no campo da fabulação, onde a experiência subjetiva se transforma em imagem arquetípica, de sensibilidade crítica sobre os papéis femininos, em especial, o da mãe. A pintura é como rito e linguagem: uma forma de dizer o que ainda não se sabe nomear.

 

Chama a atenção a presença de hienas, animais que habitam com frequência a produção fantástica da artista britânica Leonora Carrington (1917-2011), desde suas produções pré-surrealistas de quando tinha apenas dezoito anos de idade, como em “Hyena in Hyde Park” (1936), e no conto “A Debutante” (1937). Carrington tinha uma ligação quase identitária com a hiena. Símbolo de ímpeto, de caos, de inversão da ordem, a hiena punk-rock-alter-ego-selvagem da artista lhe fazia companhia ao rejeitar o formalismo de sua família conservadora. Para Ayra, trabalhar com repetições é recurso de expansão das cenas, em especial das pinturas estreitas, de visão reduzida, como se estivéssemos vendo por frestas.

 

Marina Ayra tem uma nítida necessidade de integrar dualidades — vida e morte, criação e destruição, força e fragilidade. Mas não busca síntese e tampouco pacificação. Seu gesto é o da ruptura: tensionar, rasgar, atravessar. Descer ao escuro é desafiar a ordem. Revolver o material simbólico é como reaprender a enxergar. Ao fazer isso, a artista não apenas altera sua pintura — ela restabelece sua aura sagrada, ritualística. Algumas coisas são vistas apenas no escuro.

 

Xangai, primavera de 2025 

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