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2025

 

Tudo que sou será bruma-espuma ao amanhecer

Casagaleria - São Paulo/SP​

Curadoria: Flavia Gomes

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Tudo que sou será bruma-espuma ao amanhecer, por Flavia Gomes

O azul.

Mais uma vez, o azul captura.
Um azul profundo e luminoso envolve e arrebata o olhar e, de repente, é como se mais nada importasse. Da imensidão, surge a silhueta de uma menina com chifres de alce. Ela olha para baixo, parece ter um corpo ali, assim como um polvo. Entre menina e corpo, um fio fino e firme atravessa as águas, atravessa a menina até alcançar um corpo deitado, encoberto por um tecido opaco e uma névoa branca, no topo da tela. Há imagens que funcionam como chaves de leitura. Avó, mãe, menina e polvo (2025) é uma delas. O azul intenso, carregado de luminosidade, nos convida a mergulhar no universo fantástico de Marina Ayra (n.1979, São Paulo), povoado por seres animados, antropomórficos e em metamorfose, seres que dão vazão ao que não pode ser dito.

 

Esta é a segunda exposição individual de Ayra em 2025, na qual a pintura se afirma como veículo e linguagem de uma fabulação em torno do feminino, tema central de sua pesquisa. O processo iniciado com reflexões sobre a maternidade expande-se agora para outros campos de representação da mulher, em diálogo íntimo com ciclos de aparição e desaparição de figuras mitológicas e arquetípicas.

 

A forma como Ayra constrói suas narrativas, descendo ao inconsciente para encontrar partes de si evoca o mito sumério Descida de Inanna, deusa que atravessa os limites do seu domínio para alcançar o subterrâneo e enfrentar Erishkigal, rainha dos mortos. Despojada de armas e adornos deixados no caminho, Inanna chega ao trono nua e enfraquecida. Seu corpo é então suspenso em um gancho e assim padece. Sua libertação, mediada por Enki, deus da água doce, depende da troca de corpos, de alguém que se sacrifique (ou seja sacrificado) e a substitua no subterrâneo: ninguém retorna ileso de uma experiência como essa.

 

Não surpreende, portanto, que a água ocupe o trabalho de Ayra, assim como a cor, as mulheres, as crianças e a fauna. A água é fluxo e reverberação, espelha estados internos. Ela desconhece fronteiras: ocupa, jorra, dissolve. É nesse fluxo que se instauram negociações, lamentos e conciliações.

 

O grande painel Guardiões do amanhecer (2025), pintura de maior dimensão já realizada pela artista, confere à água o centro do pensamento — tanto na narrativa quanto na construção cromática. Nele, uma mulher submersa é cercada por jacarés e crocodilos de um lado e, de outro, por uma hiena volumosa e caolha. Entidades fantasmagóricas formam um semi-círculo em torno da mulher, como se a protegessem. Mas o que seriam elas? De novo, a linha-ligação de Avó, mãe, menina e polvo se impõe como chave possível: o fio liga o acima e o abaixo, o visível e o velado, em uma tentativa de conciliar partes antes rejeitadas de si com plena aceitação, sem julgamento.

 

Ayra reinsere continuamente elementos de uma composição em outra. Em sua iconografia, a repetição opera como territórios familiares e como método, que a induz ao estado hipnótico de criação, no qual as imagens ganham novas camadas de sentido. A menina com chifres de alce, antes sobre um piso que deixava ver um corpo pelas frestas em Chifre (2025), já não pertence a um tempo-espaço definido em Avó, mãe, menina e polvo; hienas que anunciavam uma mudança de estado das coisas agora assumem posições de afeto, como em Mãe da noite (2025); e em Pacto do retorno (2025) bebês brincam, alheios à (ou com a) boca aberta do jacaré.

 

As pinturas de Ayra revelam narrativas temporais: cenas se desenrolam diante do olhar, acentuadas por transições cromáticas e corpos em movimento, ou estados de tensão. Essa qualidade narrativa se apoia em uma longa tradição nas artes visuais, em especial associada à mudança das estações. Penso na Primavera de Sandro Botticelli, nas pinturas do biombo Ten-Fold Folding Screen with Genre Paintings de Kim Yun-bo (Museu Nacional de Arte Popular, Seul), e nos enormes polípticos de Joan Mitchell. Em Botticelli, as variações tonais anunciam a floração e a mudança de humor das pessoas; em Kim Yun-bo, as estações informam a natureza e ritmo do trabalho, na primavera e verão, e da introspecção intelectual durante o outono e inverno. Em Mitchell, o tempo adquire uma qualidade puramente topográfica: gestual e cromática.

 

Para Ayra, o tempo também é cor. E assim como o azul que hipnotiza e marca o ingresso em águas profundas, ao realizar a subida, o caminho de retorno à superfície das coisas, Ayra retoma a produção de uma imagem velada, construída a partir da sobreposição de tinta e colagem sobre tecido, dissolvida pela translucência da organza vermelha sobreposta à tela. É como se a artista soubesse que tocou em algo sagrado e precisasse retomar o fôlego para escavar mais — mas não agora. No processo de subida e retorno à superfície, os mesopotâmios associaram Inanna à Venus, quando aparece no firmamento como estrela da manhã, anunciando o sol que está por vir. E então a noite se desfaz em bruma-espuma ao amanhecer.

 

São Paulo, primavera de 2025

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